quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

OS INTOCÁVEIS

Não, eu não me refiro ao filme hollywoodiano, que conta a saga do policial Elliot Ness contra o mafioso Al Capone... Refiro-me a um grupo muito especial existente na igreja evangélica moderna, que muitos afirmam ser intocáveis e inquestionáveis. Dizem que é a Palavra de Deus que assim determina, pois ela é categórica e incisiva quando Deus, no AT, ordena: “Não toqueis os meus ungidos, nem maltrateis os meus profetas” (1 Cr 16:22; Sl 105:15). Estou falando dos pastores e dos profetas, os ungidos de Deus no meio da igreja nesses últimos dias. 

Segundo aquilo que eu chamo de “Teologia da Intocabilidade”, esta classe especial de ungidos não pode ser confrontada nem questionada, e muito menos podemos exercer-lhes qualquer forma de oposição, quer doutrinária, quer governamental. Afinal, são ungidos de Deus, que governam a igreja segundo a Sua vontade e sob a Sua orientação, por meio da Sua revelação direta! Para este fim, invoca-se firmemente a experiência de Davi quando era perseguido por Saul (1 Sm 24 e 26). Por duas vezes, a Escritura relata que Davi poupou a vida de Saul, pois o considerou ungido de Deus, o que de fato ele era. Mais tarde, o próprio Davi ordenou a morte de um soldado amalequita que alegou tê-lo matado (2 Sm 1:13-16), pois ele ousou matar o ungido do Senhor!


Há muito este movimento protecionista se fomentou em nosso meio. Pregações exaltadas invocam este direito aos pastores, bispos e apóstolos modernos e aos profetas do neopentecostalismo. Já presenciei algumas destas pregações, onde vociferam-se maldições e promessas de juízo divino àqueles que se oporem às idéias, diretrizes, doutrinas e revelações dos “ungidos”, numa clara tentativa de intimidação aos contrários ― na maioria das vezes bem sucedida, pois impõe medo aos ouvintes. Numa destas “pregações”, um famoso pastor norte-americano ― você deve ter um de seus best sellers em casa! ― lança uma série de maldições a seus opositores, maldições extensivas a seus filhos e netos, num claro desconhecimento escriturístico de que os descendentes não pagarão pelos pecados dos ancestrais, segundo Jr 31:29 e Ez 18. Assim, o púlpito da igreja, que deveria ser usado para ensino, conforto e exortação na sã doutrina, está sendo usado em causa própria, para invocar um pretenso direito de intocabilidade, para garantir uma imunidade (a meu ver, seria melhor se chamada “impunidade”) plena a obreiros que não desejam questionamentos de nenhuma espécie, já que dirigem a igreja por meio de revelações inquestionáveis.

Os defensores desta ideia rotulam seus opositores como “rebeldes” e “murmuradores”. Lançam mão das inúmeras passagens bíblicas que apontam para o fim trágico dos que assim agiram no passado (os episódios de Datã, Abirão, Core, Arão e Miriã contra Moisés, e Absalão e Seba contra Davi), e com isto conseguem, na maioria das vezes, abafar as tentativas internas de questionamento. E quando a oposição se origina de fora, dentre os não crentes, os “ungidos” primeiramente trabalham em prol da desmoralização das denúncias (e principalmente dos denunciantes), enquanto assumem a piedosa postura de “perseguidos por amor ao Evangelho”, e ponto final. Por exemplo, se o dirigente de uma igreja é flagrado pela fiscalização secular desviando dinheiro, por mais que haja evidências ou provas contra ele, sua pueril defesa se baseia na afirmação de que está sendo perseguido por incrédulos e infiéis (como se o status de não-crente fosse condição desqualificante!), pelo fato de estar servindo a Deus fielmente, inclusive dando frutos em seu ministério (confundem frutos com resultados... Em breve, postarei alguma coisa acerca disto)... E a maioria engole esta bucha, principalmente as suas “ovelhas”, que partem imediatamente em defesa de seu inocente e perseguido pastor.



Antes de tudo é necessário enxergarmos as diferenças entre oposição e rebelião, pois apesar de parecer se tratar da mesma coisa, são muito diferentes. A oposição é a discordância de um ou mais pontos de vista, sempre no campo das idéias e da conduta; a rebelião transcende as idéias, e passa a ter conotações pessoais, quando, com ou sem oposição, se usurpa uma posição, conspirando contra seu detentor para afastá-lo, destituí-lo ou reduzir-lhe a autoridade. Com a oposição, busca-se convencer alguém de alguma atitude errada, visando correção e mudança de atitude; com a rebelião, não se visa correção, mas sim a tomada do poder ou a derrubada de uma autoridade. A oposição é pública e aberta; a rebelião na ampla maioria das vezes é oculta e velada, planejada na calada da noite. Os opositores não se tornam inimigos, apenas adversários; os rebeldes assumem uma postura de inimizade e disputa ferrenha. É possível conviver pacificamente com opositores; o mesmo é impossível com os rebeldes. É possível se chegar a um acordo com os opositores, mas impossível com os rebeldes. É desnecessário dizer que condenamos veemente e ferozmente qualquer tentativa de rebelião no meio da igreja.


A totalidade dos textos bíblicos usados pelos defensores dos “ungidos” trata, na verdade, de clara rebelião, e não de oposição ou questionamento. Questionar com o intuito de corrigir jamais pode ser tratado como rebelião. Observe-se que os diáconos foram instituídos pelos Apóstolos após uma murmuração dos cristãos gregos contra os judeus (At 6:1-7), o que nos mostra que nem toda murmuração é maligna e diabólica. Outro exemplo clássico de divergência ocorreu ainda no primeiro século, quando os apóstolos e anciãos da igreja se reuniram em concílio para resolver um problema entre dois grupos, em relação à obrigatoriedade da observância da Lei pelos crentes gentios (At 15); mesmo em meio às discussões, foi possível se chegar a um acordo, e a decisão conduziu a igreja a uma unidade de fé. Observamos assim que até mesmo no seio da igreja pode (e deve!) existir a chamada “crítica construtiva”, que poderá ser usada para corrigir ou melhorar condutas e formas de governo. Ainda no AT, Moisés deu ouvidos a uma crítica de seu sogro, e com isso melhorou sua forma de administrar o sistema judiciário em Israel (Ex 18:13-27). Contudo, é inegável que quando o questionamento ou a murmuração têm por objetivo destituir a liderança ou minar-lhe a autoridade de forma covarde e sumária, a situação passa a ser rebelião, tomando uma dimensão totalmente condenável em todos os seus aspectos.


Podemos considerar algumas coisas básicas a respeito da "intocabilidade", à luz da Bíblia:

Primeiro, esta condição foi originariamente dada por Deus aos Patriarcas. Os textos da Escritura que relatam a ordem divina de “não toqueis os meus ungidos” estão inegavelmente contextualizados aos primeiros Pais de Israel (Abraão, Isaque e Jacó), que por sua pouca força e número necessitavam da proteção divina para a sua sobrevivência e para a criação de uma nação. Na vida de Abraão e Isaque vemos Deus guardando a cada um contra arbitrariedades de reis e tiranos da antiguidade. Até por sonhos o Senhor repreendia os perseguidores e protegia seus ungidos (Gn 20:1ss; 31:22-24). Jacó, após a traição de Simeão e Levi contra os filhos de Siquém, recém pactuados e circuncidados como sinal deste pacto, demonstrou preocupação com uma possível represália dos povos vizinhos (Gn 34:30), já que este tipo de quebra de aliança era imperdoável na antiguidade. Mas a proteção divina estava sobre ele e sobre os seus, o que lhes garantiu a sobrevivência.

Segundo, a intocabilidade bíblica aos ungidos, se aplicada aos dias de hoje, se limita à proteção contra mal físico (e nem sempre, já que muitos foram e serão martirizados por amor ao Evangelho!), mas em momento algum concede ao ungido qualquer imunidade em relação a críticas por suas atitudes e idéias equivocadas. Davi, nas duas ocasiões que poupou a vida de Saul, não ousou tocá-lo fisicamente, machucando-o ou matando-o, mas apontou seus erros diante de todos os presentes (1 Sm 24:8-15; 26:13-25). Um ungido de Deus (e na verdade nenhum cristão, independentemente de unção) jamais deve ser morto ou agredido, mas pode ser questionado, pode ter suas ações, idéias e atitudes analisadas à luz das Escrituras e condenadas, caso estejam incorrendo em erro. Sempre no campo das ideias e do debate, e nunca além disto.

Terceiro, em nenhum momento, quer no Antigo ou no Novo Testamento, a Escritura associa a condição de ungido de Deus a qualquer característica de infalível. Somente o dogma católico romano concede ao seu líder supremo, o Papa, a condição de infalibilidade. No meio protestante, não reconhecemos tal dogma, e nem o concedemos a nenhum dos nossos líderes, por mais privilegiados que sejam. Davi compreendia que o fato de Saul ser ungido de Deus não o impedia de cometer erros, e nem proibia ninguém de chamar a sua atenção e repreendê-lo, na tentativa de levá-lo a corrigir suas atitudes erradas. E o texto sagrado o mostra por duas vezes fazendo esta correção verbal a Saul. Nem mesmo a tentativa de Abner de impedir que ele erguesse sua voz surtiu efeito (1 Sm 26:14), mas Davi não deixou de proclamar os erros do ungido, evidentemente de forma respeitosa e educada, mas contundente, chamando-lhe a atenção para seus erros e chamando-o ao arrependimento e mudança de atitudes.

Quarto, questionem-se idéias e ações, e não pessoas. Não podemos em nenhum momento nos posicionar contra o “Pastor Fulano”, e sim contra suas idéias, doutrinas e ações erradas. O maior objetivo deverá ser a correção das atitudes erradas e doutrinas estranhas pregadas pelo “Pastor Fulano”, e não a execração pública da pessoa. Ademais, não é possível que TODAS as suas atitudes estejam completamente erradas: certamente, o “Pastor Fulano” está trabalhando no Reino de Deus, ganhando almas para Jesus, etc. Seu erro pode ser o ensino de uma doutrina errada. E é exatamente contra esta doutrina que devemos nos levantar, e não contra o pastor ou a obra que ele tem desempenhado. Ressaltemos e combatamos o erro, mas analisemos os acertos. Evidentemente, acertos não justificam erros, mas igualmente erros não desqualificam acertos. Todas as facetas devem ser levadas em conta para que não desprezemos ou excomunguemos pessoas, e sim ações erradas.

Quinto, aprendamos com João Batista que não importa a posição do homem; nossa obrigação para com Deus é defender a fé que uma vez nos foi entregue (Jd 2), não importa o que tenhamos que fazer, a quem tenhamos que questionar, o que venhamos a perder, inclusive a nossa própria cabeça (Mt 14:1-12). João não se intimidou diante da posição do rei Herodes, mas corajosamente apontou-lhe os erros, mesmo sabendo que isto poderia custar-lhe a liberdade e a vida. Paulo também não se calou diante dos erros de Pedro, apesar de este ser inegavelmente uma coluna da igreja; contudo, Pedro estava agindo de forma errada, e Paulo não se omitiu em relação a este erro, antes repreendeu a Pedro na presença dos demais (Gl 2:11-14). Em relação a isto, chamamos a atenção para a omissão dos crentes nos dias de hoje. Muitos, com receio de “tocar nos ungidos” omitem-se na defesa da fé genuína. Outros, assumem a posição de Abner, defendendo os “ungidos” com unhas e dentes sem ao menos confrontarem as suas doutrinas, práticas e condutas com a Escritura, como bem faziam os crentes de Beréia (At 17.11). Com estas atitudes, os omissos demonstram que valorizam muito mais as pessoas e suas posições que a Palavra de Deus e a sã doutrina. Graças a esta omissão e/ou a esta defesa cega, os “ungidos” insistem em proliferar falsas doutrinas e práticas erradas em nosso meio. Devemos ter a mesma postura diante da defesa da sã doutrina, nos indignando contra distorções do erro e reagindo diante das falsas doutrinárias e práticas espúrias inseridas no seio da igreja.

Finalmente, nenhum “ungido” está acima das Escrituras. O próprio Paulo, o apóstolo dos gentios, escritor de quase metade dos livros do Novo Testamento, deixou-nos uma orientação clara a respeito disto: “Mas, ainda que nós mesmos, ou um anjo do céu, vos anuncie outro evangelho, além do que já vos tenho anunciado, seja anátema” (Gl 1:8-9). Ele ainda nos orientou categoricamente a não ultrapassarmos o que está escrito (1 Co 4.6). Ora, se nem mesmo Paulo poderia ensinar um Evangelho distorcido e autoriza uma maldição sobre si próprio, quem somos nós, ou quem são estes “ungidos” que se julgam no direito de distorcer as Escrituras e as regras por elas dispostas para a vida cristã, e ainda de usurpar uma intocabilidade quem nem os apóstolos buscaram para si?

Os questionamentos sempre existiram e devem continuar existindo em nosso meio, numa forma salutar e evolutiva. Os pastores devem incentivar as críticas construtivas, e não abafá-las, numa atitude ditatorial. Um dos maiores objetivos de um pastor deve ser desenvolver nas suas ovelhas a prática da liberdade de opinião e o senso crítico, e não uma postura de passividade e submissão cega. A igreja e sua liderança, afinal de contas, não são perfeitas, e qualquer crítica construtiva que sirva para melhorá-las é válida e aceitável. Moisés aceitou crítica do sogro, e por meio dela melhorou o sistema judiciário de Israel. Os apóstolos aceitaram críticas, e instituíram o diaconato.



Os críticos,por sua vez, devem criticar e julgar de conformidade com a Palavra de Deus, e também devem estar abertos às réplicas, e ambas as partes prontas para reconhecer quando estiverem equivocados, mudando sua conduta. Contudo, as rebeliões, tão comuns nos dias atuais, devem, sim, ser combatidas e extirpadas de nosso meio. E igualmente abolida esta nociva prática de tornar os pastores e líderes intocáveis e imunes a qualquer questionamento, para o bem do Corpo de Cristo.

Encerro transcrevendo as palavras do Pr. Ciro Sanches Zibordi, discorrendo sobre o mesmo tema em seu blog: “Quanto aos que, diante do exposto, preferirem continuar dizendo — presunçosamente e sem nenhuma reflexão — ‘Não toqueis nos meus ungidos’, dedico-lhes outro enunciado bíblico: ‘Não ultrapasseis o que está escrito’ (1 Co 4.6). Caso queiram aplicar a si mesmos a primeira frase, que cumpram antes a segunda!”.

Um comentário:

  1. Muito boa apologia meu irmão. Precisamos formar um batalhão para vencermos os "ungidões do últimos dias"

    Que Deus lhe conceda mais e mais sabedoria.

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